“Cortázar quer um leitor participativo”. A frase não saía de sua memória. Ouviu-a, pouco antes de entrar naquele ônibus, naquela tarde, em uma palestra de um professor de literatura latino-americana. “Cortázar quer um leitor participativo”. E a frase martelava. Sua mente relacionava outra frase que ouvira há tempos de um amigo escritor, que teorizava algo sobre o escritor somente se realizar quando o leitor se transformar em seu personagem. Outra teoria contada por outro amigo, o Luiz Henrique, dava conta de que o autor precisa expandir o real. “É claro que o leitor tem que participar desta expansão”.
Pensa no último conto que lera e fora parar na porta do cemitério, de madrugada, tentando viver a experiência do escritor quando escreveu o conto e onde o personagem terminava uma longa peregrinação, exausto. Queria comprovar a tese de seu amigo escritor, mas nada acontecera no cemitério, a única coincidência era o cansaço, mas não havia túmulo que identificasse como o descrito e concluir a estória construída pelo autor. A pior parte fora convencer um taxista a buscá-lo, naquele horário, no portão do cemitério.
Em outros contos, como aquele do personagem que escrevia em guardanapos, andara por várias panificadoras (a autora usou como espaço uma panificadora, não é?), até encontrar uma mesa que deveria ser a que a personagem deixava seus guardanapos com suas anotações. Por lá estivera vários dias, deixara pensamentos em guardanapos, mas ninguém aparecera para compartilhar sua atuação. Os guardanapos desapareciam em algum cesto de lixo ao final do dia, jogados pelas mãos incensíveis de uma garçonete.
Chegara ao absurdo de seguir um casal, quando o conto insinuava que o perseguidor seria assassinado pelo parceiro da bela mulher, que se sentia perseguida. No entanto, no terceiro dia de caminhar pelas calçadas, frequentar shoppings ou esperar no posto de combustível em frente ao prédio onde o casal se encontrava secretamente (ele supunha), o proprietário do posto chamara a polícia e ficara acordado que ele não voltaria mais ali.
O ônibus chocoalhava. Não conseguia se concentrar na leitura dos contos do Gabriel García Marquez. Livro que não havia lido, comprou no caminho entre a palestra e o ponto de ônibus, num sebo que não frequentava, inspirado pela temática da literatura latino-americana. O que será que quer dizer leitor participativo? A pergunta ecoava, ressoava, martelava, atormentava.
Entrou um rapaz no ônibus, música alta. Incomodava. Lembrou-se do conto que lera recentemente, quando um passageiro, irritado com a música que o atormentava provocou um escândalo dentro do ônibus e se viu cercado por uma gangue. O conto não tinha fim, não sabia o que acontecera naquela viagem. Será que o leitor participativo é criar seu próprio fim para a história?
No ônibus, a música continuava alta. Naquele momento estava mais lotado, com mais gente e o burburinho de pessoas contando seu dia uns para os outros, gargalhando, reclamando, fofocando, sussurrando, se confundia com o chocoalhar. Era impossível continuar lendo.
“Cortázar quer um leitor participativo”, repetiu em voz alta. A passageira sentada ao lado, perguntou se ele falara com ela. O que quis dizer… Sua resposta foi o silêncio e a moça constrangida, mudou a direção do olhar. Nem percebeu que era uma moça bonita, com olhos negros grandes, cabelos compridos escorridos no ombro e vestida com um vestido vermelho, um sobretudo curto preto que denotavam suas belas curvas e deixavam a mostra pernas bem torneadas, sensuais. Nem notou que a moça bonita o olhava com interesse diferente do intelectual, desde o momento em que se postara ao seu lado. Decepcionada com o menosprezo de sua presa, a moça tratou de cruzar seus olhares pelos corredores do ônibus apertado, buscando alguém mais aprazível para continuar sua caça diária.
Talvez participar seja um complemento do leitor que absorve o personagem. É claro, participar é continuar criando o personagem, sua estrutura e interferir na história, ajudá-lo a compor a história. E sorriu feliz com a conclusão. A moça ao lado, que não achou outro olhar, observava que o homem balbuciou uma frase desconexa.
Na mente daquele leitor surgiu mais um conto que envolvia confusão no ônibus: o conto do assalto ao cobrador, que lera no ano passado, de um escritor local, mas que ficara marcado, porque o assalto não se concretizara com a ação da polícia, que matara o criminoso. E se o assaltante não fosse um profissional, mas um passageiro que resolve experimentar algo diferente, algo imprevisível, algo inverossímel. A polícia não seria avisada e na fuga, faria refém uma passageira.
De repente um estampido. Não prestara atenção, mas acontecia um assalto no ônibus lotado. Não viu direito, mas um tiro foi dado e alguém foi acertado. A moça ao lado caiu sobre seus ombros e uma mancha de sangue escorreu de seu peito. Seu braço também doeu e muito. Sentiu o sangue deslizar no seu braço esquerdo. Uma gritaria absurda aconteceu, todo mundo falava ao mesmo tempo, o que o incomodou muito.
Aquilo não estava escrito em nenhum conto que lera até aquele dia…
Nilton Bobato, reside em Foz do Iguaçu desde 1980. É professor de língua portuguesa, vereador pelo PCdoB, membro do Conselho Estadual de Cultura, integrante da Academia de Letras de Foz do Iguaçu e autor de RISOS DA FRONTEIRA (2003), PRATO FEITO (2005), PROSA DE SACADA (2005), SOBREMESA (2008), UM BRINDE A TRÊS AMIGOS (2010), PROSA DE ESTRADA (2011) e A SORTE NÃO SORRIU PARA CÉSAR RONDICATTO (2014). Contato: niltonbobato@ig.com.br