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Protagonizado por mulheres, trabalho de cuidado segue “invisível” à população

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Fundamental à sociedade, esse tipo de trabalho é mal remunerado e não valorizado, aponta pesquisadora que coordena o Grupo de Pesquisa Economia do Cuidado

A cena se repete todos os dias: depois de uma jornada desgastante, a mulher retorna para casa e, mesmo exausta, é obrigada a dar atenção aos filhos, ao marido e ao próprio lar. Comum para as brasileiras, essa rotina ilustra bem um tipo de trabalho que, apesar de ser fundamental para a sociedade, segue invisibilizado e restrito às mulheres, como se apenas a elas coubesse este papel: o trabalho de cuidado. Estudado pela chamada Economia do Cuidado, este conceito reúne atividades como atenção à saúde, alimentação, limpeza, educação e serviços domésticos, entre outros e torna-se mais evidente com a aproximação do Dia Internacional da Mulher.

Estudiosa do tema, a professora Silvia Lilian Ferro, coorganizadora, ao lado da advogada Thaíse Thomé, da obra “Mulheres Entre Fronteiras – Olhares interdisciplinares desde o Sul”, publicada pela Editora Universitária da UNILA, escreve em um artigo presente na coletânea que o trabalho de cuidado abrange todos os campos da atividade humana que possibilitam a geração e a provisão de materialidade para a vida que fica fora da área de produção de mercadorias e de circulação do dinheiro. No entanto, apesar de ser fundamental, por sustentar todo o conjunto das atividades econômicas, esse tipo de atividade foi propositalmente retirado da área da Economia Política. Além disso, atividade de cuidados durante muito tempo foi ignorada como trabalho, justamente por ser vista como não geradora de bens duráveis – como não produtora de mercadorias. Outro conceito errôneo é de que este deveria ser provido apenas pelas mulheres, tidas como “naturalmente” dotadas e dispostas a fazê-lo.

Doutora em Ciências Sociais, a professora – que coordena o Grupo de Pesquisa Economia do Cuidado – Contribuições para políticas públicas de cuidados na América Latina, na UNILA –, conta que independentemente da tendência política, as correntes econômicas tradicionais sempre tiveram como protagonista da ação econômica a pessoa que, em busca de lucro para satisfazer tanto suas necessidades quanto suas expectativas, atua na produção de bens e serviços que possam ser monetarizados. Além disso, historicamente foi concebida a noção de que a pessoa economicamente ativa deve ser homem, racional e desprovido de interdependências – que não necessite de cuidados materiais ou espirituais. Ou seja, o trabalho de cuidado foi invisibilizado desde o nascimento da economia política, que o considera uma atividade sem valor para a esfera econômica.

Como forma de reverter esse quadro, surge a Economia do Cuidado, que se refere ao dimensionamento econômico da geração, da provisão e dos impactos macro, meso e micro institucionais dos sistemas de cuidado, seja no âmbito individual, familiar ou coletivo. Esse ramo da economia propõe formas de não apenas reconhecer, mas de mensurar o peso que o trabalho de cuidado possui na economia enquanto atividade humana.

Outro ponto importante é que tanto crianças e adolescentes quanto adultos demandam cuidados. Inclusive homens e mulheres sem nenhum problema de saúde, ainda que apenas as mulheres sejam as “cuidadoras hegemônicas” e cuidem, mesmo quando também necessitam de cuidados. Isso equivale a dizer que por trás de pessoas fracas, há pessoas fortes, principalmente homens adultos, que usam o trabalho doméstico e o cuidado da mulher como suporte para suas vidas não apenas em períodos de crise, mas também, e sobretudo, na vida cotidiana.

Uma das autoras presentes na obra organizada pela professora Silvia Lilian Ferro, a advogada Shirley Lori Dupont, mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina (ICAL) da UNILA, destaca que, nessa questão, as mulheres pobres e pretas são as mais vulneráveis, pois, em maior percentual, trabalham para ajudar no sustento da família e, em sua grande maioria, são substitutas de mulheres brancas que saíram do âmbito familiar para trabalhar. Temos aí outra característica do trabalho de cuidado: é mal remunerado (ou até mesmo não gera remuneração para quem o pratica).

Especificamente no Brasil, essa substituição tem suas raízes na escravização, que radicalizou a divisão sexual e racial do trabalho, em que mulheres escravizadas eram escolhidas para o trabalho doméstico, incluindo a criação dos filhos de famílias brancas. Segundo a advogada, uma das grandes dificuldades para a valorização dos cuidados, que é crucial para a vida humana e reprodução da força de trabalho, é justamente este arquétipo racista, que ainda enxerga este tipo de trabalho como uma atividade indigna.

Dia Internacional da Mulher
Apesar de ser necessário atentar a esta realidade durante todo o ano, as discussões sobre como enfrentar o problema tornam-se mais evidentes no mês de março, mais especificamente no Dia Internacional da Mulher, quando a sociedade passa a debater temas similares.

Em 2019, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) sobre Outras Formas de Trabalho revelou que, naquele ano, 146,7 milhões de pessoas (85,7% da população) desempenhavam trabalhos domésticos no Brasil, com significativa participação das mulheres (92,1%), contra 78,6% de homens. No que se refere ao cuidado de moradores no domicílio (sejam crianças, idosos, enfermos ou pessoas com deficiência), a pesquisa apontou que 54,1 milhões de brasileiros (31,6% da população) são responsáveis por esta atividade em seus lares. Neste quesito, as mulheres também são maioria: 36,8% desta população, contra 25,9% de homens.
A elas também cabe a maior carga quando se trata do tempo dedicado diariamente à execução do trabalho de cuidados, o que revela um outro fenômeno, segundo Silvia Lilian Ferro: a “pobreza de tempo”, que atinge as mulheres em geral e, em particular, reproduz pobreza nos lares vulneráveis, que em sua maioria são chefiados por mulheres que, muitas vezes, não podem conciliar o tempo do cuidado com o tempo do trabalho remunerado, o dos estudos e até o do cuidado com si mesmas.

Segundo o IBGE, que executa medições sobre o uso do tempo, enquanto em média as mulheres dedicam 4h10min diários para executar trabalhos domésticos, os homens dedicam metade desse tempo (2h22 min). Por sua vez, elas passam em média 2h13min cuidando de pessoas da família, enquanto eles apenas 1h39min. Aos estudos, as mulheres dedicam 3h45min, os homens, 4h11min diários.

 

Para saber mais:
“Mulheres Entre Fronteiras – Olhares Interdisciplinares desde o Sul”, organizado por Silvia Lilian Ferro e Thaíse Vieira Thomé. EDUNILA – Editora Universitária da UNILA. 2019.
Informações: https://editora.unila.edu.br/edunila/catalog/book/52.
A professora Silvia Lilian Ferro está disponível para entrevistas. Para informações, consulte o Guia de Fontes da UNILA (https://documentos.unila.edu.br/guiadefontes).

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