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O dólar, o mordomo e a crise…

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Leitor assíduo que sou de romances policiais ingleses das primeiras décadas do século 20, período que o crítico Howard Haycraft chamou de “era de ouro” do gênero e que tem em Agatha Christie seu grande expoente, acabei me acostumando com histórias onde, em meio à crise, o mordomo era apontado como o grande suspeito. Como toda boa história necessita de um plot twist, em muitos casos, um novo suspeito era apresentado na trama, uma espécie de “bode expiatório” que fazia a linha investigativa tomar outro rumo, desviando o foco do verdadeiro culpado, mas tudo isso, apenas para proporcionar ao leitor uma mudança radical na direção esperada ou prevista da narrativa, revelando apenas no final o verdadeiro culpado, que em muitos casos, era mesmo o mordomo.

A palavra “mordomo” tem origem na expressão do latim medieval “maior domus” e basicamente significava o “administrador da casa”. Domus significa “da casa” e maior é uma substantivação do adjetivo major, “maior”, com o sentido de alguém que ocupa posição superior, isto é, de mando numa determinada hierarquia – a mesma palavra que o inglês, após tabelinha com o francês, adotou mais ou menos nessa época como mayor -, e que usam para se referir ao “prefeito”.

A tática do “bode expiatório” seguiu sendo usada, não apenas nos romances policialescos, mas também na vida real, e em muitos casos, o verdadeiro culpado jamais foi revelado.

Com o advento da internet, e mais recentemente, das redes sociais, muitas das mazelas mundanas seguiram sendo atribuídas a “bodes expiatórios”, e com tamanha frequência, que em muitos casos, passou-se a não se buscar mais o verdadeiro motivo ou culpado, se conformando assim com a explicação rasa, que não analisa todas as possíveis linhas investigativas e nem espera uma mudança radical da narrativa.

Aqui no Brasil, o dólar já é apontado como vilão desmotivador há muitas décadas. Eu mesmo, comecei a me preocupar com a cotação do dólar muito antes de possuir um C.P.F para chamar de meu.

Lembro-me bem, quando lá em meados dos anos 80 pedi ao meu padrasto uma viagem para a Disney como prêmio por meu bom desempenho escolar e ele me respondeu com uma frase que muitas crianças daquela e de outras épocas devem ter escutado:

“Deixa o dólar dar uma abaixada, aí nós vamos”

A variação do dólar serve de muleta para muita coisa, e aqui na nossa região, vem servindo de muleta, há pelo menos uma década, para justificar a incompetência de alguns setores na captação e mantenimento de clientes.

Desde o anúncio do encerramento de atividades da tradicional loja Casa China, feito em abril deste ano, após 49 anos de funcionamento, alguns meios de comunicação da região começaram a apontar a variação do dólar como a grande culpada do fim, não apenas desta, mas de cerca de 500 estabelecimentos que encerraram suas atividades nos últimos 12 meses no microcentro de Ciudad Del Este.

Os meios de comunicação afirmam que Ciudad Del Este está em crise, e que a culpa é do dólar. Eu não posso concordar com a afirmação de que a variação cambial com a cotação que vem se mantendo em alta, seja o único ou mesmo, o principal motivo do fechamento de lojas em Ciudad Del Este.

A Casa China é apenas mais uma – talvez uma das mais conhecidas – entre as que não se adaptaram aos novos tempos e a nova realidade de Ciudad Del Este e acabaram fechando, mas no caso específico da Casa China, talvez, a culpa não seja apenas de má administração.

A existência do pagamento de propina em Ciudad Del Este se confunde com a própria história da cidade, ninguém sabe o que veio primeiro, a propina ou a cidade.  Soma-se a isso o fato de um dos principais pontos de arrecadação – para não dizer achaque – está localizado exatamente à frente da extinta Casa China, na famosa rotatória da Ruta 7 com Avenida Carlos Antonio Lopez e você, caro leitor, deve imaginar o quanto os turistas evitaram este local ao longo dos últimos anos.

Mudança no perfil dos clientes

Desde o início dos anos 2000, o público que visita Ciudad Del Este vem mudando. As ruas, antes tomadas de sacoleiros, passaram a ser ocupadas por turistas. Muitas lojas se adaptaram, aperfeiçoando seu modelo de atendimento, antes voltado para vendas por atacado – em uma versão menos glamurosa do B2B – atendendo clientes que tinham pouca ou nenhuma exigência quanto a bom atendimento, conforto e segurança.

Shoppings e novas lojas, com estrutura e ambiente familiares aos brasileiros – que somam quase 90% dos visitantes – foram inauguradas. Outras tantas foram reformadas para atender esse novo e exigente público, o do B2C. Estas mesmas lojas, enxergaram na mudança, a possibilidade de captar novos clientes, e continuaram evoluindo ao longo desses quase 20 anos. Algumas até se transformando em shoppings e/ou lojas de departamento.

Na contramão da evolução, muitos comércios tradicionais se negaram a mudar, mantendo o estilo de atendimento que só funcionava com os sacoleiros. A escassez de sacoleiros fez com que a atenção dos policiais de trânsito municipal se voltasse para os turistas, os transformando na “bola da vez” do achaque, primeiramente, com o famoso esquema do “fura-fila” – que ganhou o apoio inclusive, de alguns lojistas que adquiriam o “vale fura-fila” antecipadamente para oferecer aos clientes como vantagem – e posteriormente, com a tática da fiscalização de veículos e de documentos que nunca estavam condizentes com as leis criadas naquele mesmo momento, de acordo com a cara e sotaque de cada motorista.

A administração de Ciudad Del Este – sempre nas mãos do “Clã Zacarias” –  por sua vez, nada fez para melhorar as ruas no entorno do microcentro, sempre com esgoto correndo a céu aberto. Caberia à administração fiscalizar as milhares de lojas abertas exclusivamente para aplicar golpes em turistas, fato que ocorre até hoje com a ação dos famosos “piranhitas” que eu mesmo já mencionei por aqui, com muitos turistas sendo lesados diariamente.

À fiscalização, caberia também inspecionar alguns imóveis que levam o prefixo de “shopping” no nome e abrigam dezenas de lojas, mas que estão em estado deplorável de conservação, com fiação elétrica exposta, partes estruturais comprometidas, poucas saídas de emergência e com possibilidade eminente de se transformarem em mais um “Ycuá Bolaños” – supermercado de três andares em Assunção, capital do Paraguai, que pegou fogo em 2004, causando duas explosões no primeiro andar e matando 396 pessoas – a qualquer momento.

As estruturas

Apenas neste início de ano, 03 incêndios foram noticiados em imóveis do microcentro de Ciudad Del Este, a Galeria Jebai, uma das mais antigas da cidade e que abriga mais de cem lojas, que empregam mais de duas mil pessoas vendendo todos os tipos de produtos, como eletrônicos, perfumes, cosméticos, relógios, roupas, entre outros, é considerada uma verdadeira bomba relógio por seus frequentadores, chegou a ser interditada meses atrás, mas por menos de 48 horas, reabrindo sem que nenhuma reforma estrutural ou implementação de segurança fosse feita.

Por todos os motivos descritos acima – e por muitos outros que eu não julguei valer a pena citar – colocar a culpa da crise no comércio de Ciudad Del Este na variação do dólar é fazer uma análise extremamente rasa da situação. É jogar para baixo do tapete décadas de má administração pública e privada, milhares de casos de desrespeito ao turista, dezenas de golpes aplicados diariamente por comerciantes que deveriam zelar, não só pelo nome de sua loja, mas também pela imagem da cidade onde mantém seus negócios.

Apontar o dólar como “vilão” é tirar o foco do verdadeiro culpado, que no caso de Ciudad Del Este, assim como nos livros de Agatha Christie, provavelmente é do “mordomo”.

Em tempo: No próximo dia 24, deve assumir a administração municipal de Ciudad Del Este o prefeito eleito Miguel Prieto, o primeiro não pertencente ao Partido Colorado em 62 anos de história de Ciudad Del Este. O novo prefeito terá um grande trabalho pela frente, entre os mais urgentes, eliminar os corruptos da Polícia Municipal de Trânsito. De antemão, desejo boa sorte ao novo prefeito e a população “esteña”.  

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